Qual a relação entre indisciplina, ato infracional e o Estatuto?
O que fazer frente à indisciplina do aluno?
Como estabelecer a diferença entre indisciplina e ato infracional?
Desacato às autoridades escolares é crime?

Estas indagações merecem algumas reflexões, não só para a exata compreensão da Lei e o seu papel frente ao problema escolar, mas visando a apontar soluções concretas para os problemas do dia-a-dia das escolas.
Tanto a indisciplina como o ato infracional transitam indistintamente nas escolas públicas e privadas. Não é um problema específico da escola pública, oriundo da questão econômica ou social.
A atual constituição Federal, no artigo 227, estabeleceu como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, dentre outros direitos, educação.
Para facilitar a compreensão e execução da norma, a sociedade brasileira criou o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA.
Em capítulo específico do direito à educação, o ECA estabelece os objetivos, os direitos dos educandos, as obrigações do Estado, dos pais e dos dirigentes dos estabelecimentos de ensino.
No entanto, não há qualquer referência à questão disciplinar envolvendo o educando. Os redatores do Estatuto, esqueceram-se que o aluno precisa ter participação ativa e efetiva na própria aprendizagem.
Desde a sua vigência, o ECA sempre foi taxado como uma lei pessimista e permissiva, que contempla somente direitos às crianças e aos adolescentes e que, de certo modo, teria contribuído para o aumento dos atos de indisciplina ocorridos na escola e dos crimes (ato infracional) praticado por crianças e adolescentes. Essa visão é predominante ainda hoje, duas décadas após sua vigência.
A situação atual é de proteção quase integral à criança e ao adolescente; e a desproteção quase absoluta, aos adultos que com ela convivem ou que têm seus direitos ou dignidade violados pelos menores, sejam pais, parentes ou profissionais da educação, da saúde, etc
Por outro lado, a lei não pode ser apontada como uma das causas dos transtornos disciplinares. Estudos apontam a própria família como origem da indisciplina na escola, que obviamente é um reflexo da sociedade a qual pertence.
Na maioria das vezes, pais, filhos, professores e alunos perderam os parâmetros de hierarquização de valores humanitários e limites sociais capazes de prover civilidade às relações escolares e sociais.
Ao deixar de estabelecer os limites aceitáveis na relação da criança com a própria família, a sociedade, os amigos e autoridades, os pais contribuíram em muito para a perda do próprio domínio sobre os filhos.
A permissividade resultante da interpretação dada à lei é apontada como uma das causas da sensação crescente de impunidade reinante na sociedade brasileira, especialmente quando se trata de crime praticado por criança e adolescente. E, por conseqüência, do aumento da criminalidade.
Por conta disso, cresce de modo assustador o número de pais que entrega seus filhos à escola, terceirizando (sem pagamento correspondente) a tarefa de educar. A desculpa é sempre a mesma: “eu não dou mais conta... Já fiz tudo que podia. Faça o que a senhora quiser...”
A indisciplina se mostra perniciosa, visto que sem disciplina, diminui consideravelmente as chances de se levar a bom termo um processo de aprendizagem.
E, não raro, a disciplina em sala de aula, pode equivaler a atos simples da boa educação, como cumprimentar colegas e professores, pedir licença, desligar aparelhos eletrônicos e celulares, agradecer, jogar o lixo na lixeira, manter carteiras e a própria sala de aula limpas.
Na escola, será suficiente respeitar aos colegas, o ambiente e a si próprio. Comportamento que gera um convívio pacífico no ambiente escolar.
Indisciplina ou ato infracional?
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, em seu Art. 103, que ato infracional é a conduta descrita como crime ou contravenção penal.
Assim, toda infração prevista no Código Penal, na Lei de Contravenção Penal e Leis Penais esparsas (ex. Lei de tóxico, porte de arma), quando praticada por uma criança ou adolescente, corresponde a um ato infracional.
O ato infracional, em obediência ao princípio da legalidade, somente se verifica quanto a conduta do infrator se enquadra em algum crime ou contravenção previsto na legislação em vigor.
Desta forma, nem todo ato indisciplinar corresponde a um ato infracional, tudo depende do contexto em que foi praticado.
Indisciplina
Uma ofensa verbal dirigida ao professor tanto pode ser caracterizada como ato de indisciplina ou um crime, dependendo do tipo e da forma como foi dirigida.
O ato indisciplinar deve ser regulamentado, nas normas que regem a escola. Ou seja, o Projeto Político Pedagógico e o Regimento Escolar têm papel relevante na questão.
A conduta do aluno pode caracterizar uma indisciplina quando há descumprimento das normas fixadas pela escola e demais legislações.
Portanto, desrespeito ao colega, ao professor, ao diretor, aos funcionários ou depredação das instalações, tudo deve estar definido no regimento.
Ato infracional
Ameaça, injúria ou difamação são crimes. E para cada caso, os encaminhamentos são diferentes. Nesta caminhada a escola não esta sozinha, ela pode contar com a colaboração do Conselho Tutelar e do Ministério Público, como parceiros preocupados com o destino das crianças e dos adolescentes.
No entanto, estes órgãos atuam especialmente em caso de desrespeito aos direitos dos menores. Nos casos de crime praticado por crianças ou adolescentes, a escola precisa tomar providências internas e aplicar as punições previstas no regimento. Esgotados os recursos, deve procurar estes órgãos.
“O Conselho Tutelar pode intervir como agente encaminhador nos casos de maus tratos envolvendo os alunos, reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar e elevados níveis de repetência”, esclarece a conselheira tutelar da região sul de Joinville, Patrícia R. Gomes.
Portanto, é importante que ao construir o regimento, a escola estabeleça as regras disciplinares e punições gradativas a serem arbitradas aos transgressores. Ele deve ser de conhecimento geral, contemplando os direitos e deveres dos alunos.
Pois, a sociedade atual requer um cidadão que conheça e lute por seus direitos, mas que também tenha ciência de suas obrigações e de seus deveres.
Escola & cidadania
Ao construir seu Projeto Político Pedagógico, o estabelecimento de ensino deve deixar claro que, conforme determina a Constituição Brasileira e está previsto expressamente no Estatuto da Criança e do Adolescente, o objetivo da escola atual é o preparo para o exercício consciente da cidadania.
O professor da USP, escritor e pesquisador Yves de Ia Taille complementa que é preciso “lembrar e fazer lembrar em alto e bom tom, a seus alunos e à sociedade como um todo, que sua finalidade principal é a preparação para o exercício da cidadania. E, para ser cidadão são necessários sólidos conhecimentos, memória, respeito pelo espaço público, um conjunto mínimo de normas de relações interpessoais e diálogo franco entre olhares éticos”.
“Dos direitos o aluno-cidadão tem ciência. Agora, de seus deveres, do respeito ao conjunto mínimo de normas de relações interpessoais, nem sempre se mostra cioso. E aí surge a indisciplina, como uma negação da disciplina, do dever do cidadão”, registra o Promotor de Justiça e da Infância e da Juventude, Luiz Antônio Miguel Ferreira.
Cidadania não mais pode ser concebida de forma restrita como a possibilidade de participação política por meio de voto, que pressupunha a alfabetização ao eleitor.
A visão é muito mais ampla e genérica, uma vez que, este requisito, a partir da atual Constituição não mais vigora, pois é facultativo o voto para o analfabeto.
“A conquista da cidadania e de uma escola de qualidade é projeto comum, sendo que no seu caminho, haverá tanto problemas de indisciplina como de ato infracional. Enfrentá-los e superá-los é o nosso grande desafio”, afirma o promotor.
A importância do regimento interno
Nos casos de criança ou adolescente que praticar um ato infracional no ambiente escolar, independentemente das punições aplicadas pela própria instituição com base no Regimento Interno, o responsável pelo estabelecimento (diretor, vice-diretor, professor, assistente, etc...) deve fazer os encaminhamentos para o órgão competente: o Conselho Tutelar para os menores de 12 anos; e o Juizado da Infância e da Juventude, para os adolescentes de 12 a 18 anos de idade.
O encaminhamento ao Conselho Tutelar deve ser feito independente de qualquer providência no âmbito policial (não há necessidade de lavratura de Boletim de Ocorrência para menores de 12 anos):
Já no caso de ato infracional praticado por adolescente, deve ser lavrado o Boletim de Ocorrência na Delegacia de Polícia, que providenciará os encaminhamentos ao Ministério Público e Juízo da Infância da Juventude.
Assim, um adolescente infrator, que cometeu ato infracional grave na escola, será responsabilizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sem prejuízo das sanções disciplinares a serem impostas pela escola.
No entanto, se for ato de indisciplina (e não crime) praticado por criança ou adolescente, a competência para apreciá-lo e aplicar punições é da própria escola em reunião específica, ou de acordo com o estabelecido no Regimento Escolar, após assegurada a ampla defesa.
A infração disciplinar deve estar prevista no regimento, em obediência ao princípio da legalidade. Em qualquer circunstância, quer seja em relação ao ato infracional como ato indisciplinar, a escola deve ter presente, o seu caráter educativo e pedagógico, e não apenas autoritário e punitivo.
Conseqüências
Quando a criança ou o adolescente pratica um ato infracional, haverá um tratamento diferenciado para cada um deles, não obstante possa ocorrer a mesma conduta ilícita.
A distinção entre criança e adolescente tem importância no Estatuto, posto que, não obstante usufruírem dos mesmos direitos fundamentais, estão sujeitos à medidas diferenciadas na hipótese de ocorrência de ato infracional.
A criança infratora fica sujeita às medidas de proteção previstas no artigo 11 do Estatuto, que implicam num tratamento, através da sua própria família ou da comunidade, sem que ocorra privação de liberdade.
Já o adolescente infrator é submetido a um tratamento mais rigoroso, com as medidas sócio-educativas (incluindo as medidas de proteção) previstas no artigo 112 do Estatuto, que podem implicar na privação de liberdade.
Em todo o caso, as medidas devem ser aplicadas levando-se em consideração uma relação de proporcionalidade, ou seja, a capacidade do infrator em cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
Conforme o promotor da Infância e Juventude de Joinville, Sérgio Ricardo Joesting, “a promotoria atua para que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja efetivamente cumprido e implementado, de forma a garantir qualidade de vida às crianças e adolescentes, mas em casos de cometimento de atos infracionais é preciso intervir e efetuar a punição adequada”.
Um ato indisciplinar, quer pela criança ou adolescente deve seguir a mesma linha de tratamento: a aplicação do regime escolar, com as conseqüências nele previstas.
No entanto, algumas regras básicas devem ser observadas pela escola ao elaborar seu RI:
a) o princípio da legalidade: a punição deve estar inserida no regimento da escola;
b) a sindicância disciplinar deve proporcionar ampla defesa do aluno, com ciência de seus genitores ou responsáveis;
c) as punições devem guardar uma relação de proporcionalidade com o ato cometido, preferindo as mais brandas;
A competência para aplicá-las é do Conselho de Escola ou órgão correspondente (Conselho Deliberativo, por exemplo), após ampla apuração do ato de indisciplina. É importante considerar que, na interpretação e aplicação do Estatuto e do Regimento Escolar, deve-se levar em consideração os fins sociais da norma e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Crime de desacato
O Artigo 331 do Código Penal determina pena de detenção, de seis meses a dois anos, ou multa a quem desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Portanto, o aluno que desacatar o professor que é funcionário público, estará cometendo um ato infracional (ou crime).
E mais, no Artigo 327, § 2º, o mesmo Código estabelece que a pena será aumentada da terça parte quando os autores deste crime forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração.
Mesmo assim, não temos registro de um único professor que tenha denunciado aluno, pai ou mesmo diretor de escola por este tipo de crime no país.
“Os professores sentem-se coagidos em tomar alguma atitude quanto às ofensas proferidas a eles, seja por pena de registrar o aluno na polícia ou medo de retaliações. Eles acabam não buscando os próprios direitos” relata a conselheira tutelar da região sul de Joinville, Katyene M. Ruthes.
Portanto, a agressão verbal, física ou mesmo psicológica ao professor em sala de aula, ou mesmo fora dela, pode configurar crime previsto no artigo 331 do Código Penal.
Linha direta com os pais
Na EEB Conselheiro Mafra, de Joinville, já é tradição a conversa e o diálogo com os pais. Em casos de indisciplina, não vai apenas o bilhete para casa: a orientação da escola entra em contato com a família e explica a situação.
A orientadora Zaida G. Miranda conta que a escola desenvolve diversas atividades de conscientização com os alunos, como vídeos, palestras, discussões em sala de aula.
“A base é a orientação. Os alunos precisam entender o que está errado e agir para melhorar. É preciso orientar os pais, para que participem da educação dos filhos”, acrescenta.
“Em dois casos, os próprios pais foram agressivos conosco, ameaçaram ir à polícia porque a escola repreendeu seus filhos pelo uso de celular e namoro na escola – o que é proibido. Mas as ameaças não nós intimidaram”, garante.
“Trabalho há mais de 20 anos no Conselheiro Mafra e acredito que o contato direto e aberto com os pais é a melhor maneira de resolver os problemas, já que os avisos por bilhetes podem não chegar até eles”, completa.
Junto com as aulas de português, matemática e ciências muitas vezes precisam ensinar aos alunos lições de humildade, respeito e educação.